Westworld e a Modernidade Líquida

Ainda na década de 70, Michael Crichton começou a fazer sucesso escrevendo histórias de ficção científica, sendo a primeira delas, O Enigma de Andrômeda (1969). Em 1971, seu livro foi adaptado para o cinema, fazendo um sucesso imenso. Por conta disso, Crichton recebeu a oportunidade de trabalhar em um projeto mais pessoal no cinema: Westworld (1973), que foi escrito e dirigido por ele. A história acompanhava uma dupla de amigos que decide passar as férias em um parque de diversão que recria diversos momentos históricos, sendo um deles, o Velho Oeste. A representação das pessoas que viveram nessa época é feita através de robôs super realistas, que têm como único objetivo, servir e entreter os humanos que visitam o parque. E apesar de não ter sido um sucesso tão grande quanto sua primeira adaptação, Westworld foi bem recebido, algo que posteriormente resultaria em uma sequência desastrosa, e na aparente morte do projeto.

Nas décadas posteriores, Crichton não foi capaz de retomar esse projeto, mas, ao menos ficou conhecido por outro bem mais familiar: Jurassic Park. Infelizmente, Crichton não viveu tempo suficiente para ver sua ideia ser anunciada como a nova série da HBO em 2014. Uma produção que prometia expandir o universo criado pelo autor. Produzida por J. J. Abrams, Lisa Joy e Jonathan Nolan – responsáveis pelo roteiro e direção, Westworld estreou em Setembro de 2016. E tinha como objetivo (na verdade, ainda tem) ser a nova série principal da HBO, substituindo Game of Thrones. Dessa forma se explica o tamanho do investimento feito pela emissora, e o elenco estrelado contratado.

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Dessa vez, a história se passa num futuro um pouco mais distante, onde Westworld tornou-se um parque famoso, e procurado por todos que buscam ter uma experiência totalmente imersiva na realidade do Velho Oeste. Para proporcionar tal experiência, o parque conta com centenas de anfitriões, robôs idênticos aos seres humanos, que possuem uma avançada inteligência artificial. Isso permite que os robôs comportem-se como nós, e que pensem que de fato são humanos. Cada anfitrião tem uma narrativa, uma história da qual os visitantes podem participar. E assim conhecemos Dolores (Evan Rachel Wood), a mocinha filha do fazendeiro, Teddy (James Marsden), o interesse amoroso de Dolores, bem como a prostituta Maeve (Thandie Newton) e o bandido implacável, Hector Escaton (Rodrigo Santoro). Além disso, somos apresentados à equipe administrativa de Westworld, no caso, o Dr. Ford (Anthony Hopkins), criador do parque, e seu assistente Bernard (Jeffrey Wright), além de uma das empresárias responsáveis pela diretoria, Charlotte Hale (Tessa Thompson), e por fim, o visitante misterioso, o Homem de Preto (Ed Harris).  E todos eles estão incríveis.

Nesse sentido, é quase impossível não se impressionar em como Evan Rachel Wood, Anthony Hopkins, Thandie Newton e Jeffrey Wright, atuam tão bem. Sério. Dá gosto de ver atores tão talentosos. Claro, todo elenco está muito bem, sem excessões. Mas esses quatro são um destaque inegável. Rachel Wood e Thandie Newton tem a difícil tarefa de interpretar robôs que ora, passam por uma explosão de emoções, e logo em seguida, assumem as feições inexpressivas de uma inteligência artificial fria. Enquanto Hopkins consegue ser ameaçador, compreensivo e carismático, tudo quase ao mesmo tempo, e somente através de suas expressões. Complementando essa obra, estão, a belíssima fotografia, e, a ótima trilha sonora, composta por Ramin Djawadi, também responsável por Game of Thrones.

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Mas além de possuir evidentes qualidades técnicas, Westworld também apresenta uma riqueza em questões filosóficas. Durante toda a primeira temporada, a série toca em questões relacionadas ao livre-arbítrio, à ética, identidade, consumismo e várias outras. E todas elas remetem a um conceito criado pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman: a Modernidade Líquida. Para Bauman, a história moderna é separada por dois momentos, o sólido, e o líquido.

A modernidade sólida estava presente nos séculos passados, e era caracterizada por uma rigidez das estruturas sociais. Assim como o estado sólido da matéria, a modernidade sólida tinha forma definida, duradoura e dificilmente mutável. Quando alguma mudança ocorria, não era para destruir a solidez da sociedade, mas para substituir os sólidos. O Iluminismo do século XVII é exemplo disso, marcando a transição de solidez da sociedade ocidental, pois, se a Idade Média foi marcada pelo domínio da igreja e do pensamento teocentrista, agora, a sociedade seria regida pela razão. Ou seja, a estrutura da sociedade foi trocada, porém, a solidez dela permaneceu. Mas para entender melhor a diferença entre essas duas modernidades, falemos das características de uma sociedade líquida.

A Modernidade Líquida é marcada – diferentemente da sólida – pela instabilidade, pela transformação constante da sua forma, e por ser passageira, assim como os líquidos são. Ou seja, Bauman afirma que, através do avanço da tecnologia industrial, do domínio do capitalismo, e com o advento da globalização e aperfeiçoamento dos meios de comunicação, nossa sociedade tornou-se cada vez mais líquida. Nesse sentido, essa liquidez afeta diretamente vários setores da sociedade, como por exemplo, as relações de trabalho, de consumo, dos nossos relacionamentos pessoais e da nossa identidade. Mas como o conceito é muito abrangente, focarei (brevemente) em como se desenvolvem as questões de consumo, ética, identidade e relacionamentos na modernidade líquida.

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Uma das principais características de um líquido, é a sua fluidez, e tal característica remete diretamente ao imediatismo que vivemos atualmente. Perceba, todo o avanço tecnológico na área da comunicação e informação, tornou tudo rápido e aparentemente descartável, somado a isso, a lógica consumista dos nossos dias completa a liquidez em que nos encontramos. Consumimos uma enxurrada de informações diariamente, a todo instante somos bombardeados com diversas notícias e propagandas, e sempre que vamos consumir algo, queremos que seja de imediato, não suportamos esperar. E quanto mais consumimos, mais as coisas adquirem um caráter descartável e substituível. Afinal de contas, se um filme não me agrada, posso pausá-lo e começar outro, se um site de notícias contrapõem minhas opiniões, eu vou para um que seja melhor, se canso de uma roupa, compro outra. E segundo Bauman, essa lógica de consumo capitalista se estendeu até os nossos relacionamentos.

Da mesma forma que consumimos coisas e informação de maneira instantânea, hoje, através das redes sociais, também nos relacionamos de maneira instantânea, a lógica é a mesma. Relacione-se com quem te agrada, com quem concorda com você, e se em algum momento essa relação não for mais vantajosa ou prazerosa, termine com a mesma facilidade que você começou. Bloqueie, exclua, deixe de seguir, tudo instantaneamente. Segundo Bauman, essa é a característica mais atraente das redes sociais, não a de fazer amigos facilmente, mas de desfazer. Pois, diferente dos relacionamentos do “mundo real”, onde você tem lidar com pessoas que nem sempre te agradam, com relacionamentos que nem sempre são os mais prazerosos, e com opiniões que divergem das suas, nas redes sociais, você pode manter só quem te agrada, quem está de acordo com seu gosto. Tudo isso tendo em vista a maximização da nossa felicidade, do nosso prazer imediato, da satisfação de uma geração hedonista.

Além disso, a noção de que as redes sociais são uma realidade à parte da nossa vida real, alimenta o comportamento de maquiar a nossa vida. Atualmente, as redes sociais servem mais para aparentarmos quem gostaríamos de ser, e não quem realmente somos, criamos uma máscara e compartilhamos apenas o que é mais agradável em nossas vidas. Agimos no mundo virtual, como um lugar onde não há regras, onde podemos fazer tudo o que queremos, tudo o que nos dê prazer. E isso muitas vezes entra em conflito com a nossa própria identidade, afinal de contas, hoje, para muitos, importa muito mais o parecer, do que o ser. E Westworld funciona nessa mesma lógica.

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Como o próprio Dr. Ford afirma em um dos episódios:
“Eles (os visitantes) não estão procurando por uma história que conte quem eles são. Eles já sabem quem são. Eles estão aqui porque procuram um vislumbre de quem poderiam ser.” Ou seja, boa parte dos humanos que visitam o parque, estão ali para extravasar suas vontades, de fazer tudo aquilo que não podem no “mundo real”. Eles praticamente assumem novas identidades, e diante de um mundo que, aparentemente, não possui leis, e onde não há vigilância, fazem tudo o que desejam. Matam, torturam, abusam e estupram. Consomem todo sexo e violência disponíveis, e depois voltam para suas vidas. Afinal de contas, não há consequências, tudo é lícito, e ora, são apenas robôs que se comportam como humanos, não são humanos de fato.

Nesse sentido, outro aspecto social é fortemente afetado, a ética. No caso de Westworld, a ética não é questionada, já que, apesar das atrocidades cometidas pelos visitantes contra seus anfitriões, tudo é justificável, pois tratam-se de coisas, e não de seres. Da mesma forma, quando a solidez da ética é dissolvida em nossos tempos líquidos, ela se torna subjetiva. Para muitos, o fato da ética não estar mais amparada por uma solidez, seja a razão ou a religião, à torna questionável, relativa. Olhemos para o Brasil, quantos milhares questionam diariamente o caráter de nossos políticos, mas mesmo assim, cometem pequenos delitos igualmente corruptos? Ainda assim, em nenhum  momento eles questionam a própria ética falha que possuem. O que importa é a minha percepção pessoal do que é ética, e não a percepção social.

Mas no fim das contas, será que a culpa é da modernidade líquida? Será que ela é a responsável pelo consumo compulsório ter se tornado o centro de nossas vidas? Por termos nos acostumado com relacionamentos rasos e descartáveis? Responsável por não nos deixar descobrir nossa verdadeira identidade? Pela nossa ética subjetiva? Ou será que tais características não foram apenas externalizadas por ela? Será que nosso caráter falho e corruptível, tão típico do ser humano, não é o verdadeiro responsável?

Como o próprio William (um dos personagens da série, interpretado por Jimmi Simpson), afirma sobre aqueles que visitam o parque:
“Eu costumava pensar que esse lugar era sobre satisfazer seus instintos mais básicos. Agora eu entendo. Não é sobre servir o seu eu mais baixo, é sobre revelar o seu eu mais profundo. Esse lugar mostra quem você realmente é!”. E, talvez, a Modernidade Líquida tenha feito o mesmo conosco.

 

 

REFERÊNCIAS:

Esse texto tem como objetivo ser uma porta de entrada, tanto para Westworld, quanto para Bauman. Sendo assim, abaixo tem o link para o PDF do livro de Bauman, Modernidade Líquida:

 

Aproveito, e deixo aqui também, o link de um ótimo vídeo que fala sobre esse assunto:

 

Além de uma ótima entrevista com o próprio Bauman:

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